O menino amarrado ao poste ainda arde em minha memória. A mulher linchada que foi falsamente acusada de ser sequestradora e assassina de crianças também. Mais longe, muito mais longe, os mendigos que vi comendo lixo quando ainda era uma criança me marcaram existencialmente. Mais perto, um pouco mais perto, o assassinato de um marginal na esquina da rua onde moro influencia fortemente a minha cinzenta visão de mundo. Outras tempestuosas imagens, muitas vezes vindo à tona em mim, sempre presentes em meus rascunhos internos de textos continuamente sendo escritos, acabam por formar, junto às acima citadas lembranças, um vulcão de insistentes experiências a partir das quais interpreto o cinzento cais do caos contemporâneo. Um cais que, provavelmente, você não deve frequentar.
Posso estar errado, mas você que talvez leia esta crônica possa ser alguém que nem deve se preocupar com os destinos do Planeta Terra dentro de um só cinzento destino de desgraças, maldições e misérias. Talvez, para você, não importe quem seja amarrado em um poste, linchado por causa de um boato, quem seja assassinado por causa de um fútil motivo qualquer, quem seja estuprado ou estuprada por um ou por vários estupradores. Talvez, para você, o mendigo comendo lixo ou o bandido sofrendo a pena de Talião praticada por algum justiceiro de beira de esquina não importa e sejam apenas mais um mendigo a ser ignorado e a morte de um bandido a ser comemorada. Talvez, sim, você seja isso tudo. Ou, se não for, devo lhe parabenizar por não ser mais uma humana criatura fria que, enquanto o cinzento mundo onde vivemos está a ruir, prefere ficar distante, frio e egoisticamente voltado para o próprio umbigo.
Muitos assim agem, não olhando para os lados onde tantas ruínas e cinzas estão se acumulando. A qualquer momento ou agora, um sofrimento na face da Terra alcança grotescos patamares. No mesmo instante, e sempre, aqueles que são egoístas cinzentos entes passam por cima de tudo e continuam a construir seus particulares mundos de perfeição. Perfeição em um arruinado mundo? Perfeição em um amontoado de cacos de sonhos e esperanças? Perfeição em uma cacofonia de verbos destrutivos diariamente conjugados? Perfeição em um turbilhão de tempestades aniquiladoras de sublimes momentos, mesmo que estes sejam tão raros atualmente? Perfeição dentro do corrupto esquema das coisas em uma sociedade mundial politicamente acorrentada a arcaicos princípios escravizantes de mentes, de corpos e de almas? Perfeição neste mundo onde a agonia natural se torna um pedido de socorro da própria Natureza para que sejamos verdadeiramente racionais? Perfeição dentro de um microcosmo de inábeis ridículos tentativas de ver sempre um motivo para comemorar alguma coisa dentro do esgotado esgoto das humanas coisas?
Perfeição é a palavra inexistente entre nós. Perfeição é a palavra buscada por todos nós. Perfeição é um ideal adulto demais para crianças do cósmico berçário como nós. Brincamos ainda com tudo em nosso redor, nada resistindo a uma piada stand-up sobre como é difícil a nossa existência. Biologicamente, temos a necessidade de viver em grupo, uma meta que quase todos incessantemente elevam ao infinito. As “panelinhas” assim se formam, levando a uma desfragmentação irrestrita do todo social. É Esquerda. É Direita. É Centro. É Anarquista. É Machista. É Feminista. É Liberal. É Conservador. É Gay. É Homofóbico. É Lésbica. É Trans. É Bissexual. É Negro. É Branco. É Mestiço. É Pardo. É Amarelo. É Vermelho. É Racista. É Fascista. É Antifa. É Anti-Racista. É Neonazista. É Skinhead. É Punk. É Gótico. É Nerd. É Naturista. É Vegetariano. É Carnívoro. É Idealista. É Realista. É Sonhador. É Artista. É Ateu. É Religioso. É Gnóstico. É Agnóstico. É isso. É aquilo. É… É… É… Na miríade dos que correm para Ser parte de algo, Ser parte de si mesmo ou de algo muito maior não é mais importante.
O que é mais importante é o glamour vazio de pertencer a um determinado grupo, defendendo com ferrenha convicção suas particulares bandeiras. Hastear uma bandeira, gritar mais alto e se privar como partidário de qualquer causa, seja esta justa ou injusta, nobre ou pervertida, benevolente ou cruel, pura ou degenerada, inclusiva ou exclusivista, positiva ou negativa, democrática ou tirânica, evolutiva ou anacrônica. Na tapeçaria de cada ideal, sobra pouco tempo para pensar na Coletividade da Humanidade como um todo. Não quero que todos sigam o mesmo, nem se despersonalizem para, hipocritamente, lutarem pelo Bem Comum. O que observo é um desinteresse em defender a Espécie Humana e as demais Espécies deste planeta com a mesma euforia e determinação catárticas com a qual se defende uma causa de qualquer natureza. Poucos universalmente pensam. Poucos universalmente refletem. Poucos universalmente idealizam. Poucos universalmente lutam por um outro tipo de mundo, menos ou nada cinzento. A maioria foca em seu próprio grupinho e que se foda a Terra como um todo. O importante é ser parte de um grupo! O importante é ficar em um grupo! O importante é ser visto em um grupo! O importante é sair bem na selfie com o seu grupo! O importante é demonstrar ao mundo inteiro que se está em um grupo!
Outros meninos serão amarrados. Outras mulheres serão linchadas. Outros mendigos comerão lixo. Outros marginais serão sumariamente executados pelas ruas. Outras desgraças ocorrerão. Outras maldições se elevarão. Outras misérias se expandirão. Afinal de contas, neste mundo pós-moderno, das várias lutas que a tudo e a todos dividem cada vez mais, a camiseta a ser vestida com a estampa da panelinha a qual se pertence é muito mais importante, não é mesmo?
Inominável Ser
CINZENTO
CRONISTA
INOMINÁVEL
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