Ainda Estou Aqui: Para Não Esquecer Que Eles E Elas Ainda Estão Aqui
O Mundo Inominável #42
Brasil · França
2024
Cor
135 min
Gênero: Drama Biográfico
Direção: Walter Salles
Produção: Maria Carlota Bruno, Rodrigo Teixeira e Martine de Clermont-Tonnerre
Coprodução: Arte France Cinéma, Conspiração Filmes e Globoplay
Produção Executiva: Juliana Capelini
Roteiro: Murilo Hauser e Heitor Lorega
Baseado em Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva
Elenco: Fernanda Torres (Eunice Paiva de 1971 a 1996), Fernanda Montenegro como Eunice Paiva em 2014), Selton Mello (Rubens Paiva), Guilherme Silveira (Marcelo Rubens Paiva em 1971), Antonio Saboia como (Marcelo Rubens Paiva de 1996 a 2014), Valentina Herszage (Vera Sílvia Facciolla Paiva em 1971), Maria Manoella (Vera Sílvia Facciolla Paiva em 2014), Luiza Kosovski (Maria Eliana Facciolla Paiva em 1971), Marjorie Estiano (Maria Eliana Facciolla Paiva em 2014), Bárbara Luz (Ana Lúcia Facciolla Paiva, a Nalu, em 1971), Gabriela Carneiro da Cunha (Ana Lúcia Facciolla Paiva, a Nalu, em 2014), Cora Mora (Maria Beatriz Facciolla Paiva em 1971), Olívia Torres (Maria Beatriz Facciolla Paiva, de 1996 a 2014), Luiz Bertazzo (Schneider), Maeve Jinkings (Dalva Gasparian), Charles Fricks (Fernando Gasparian), Dan Stulbach (Baby Bocaiúva), Camila Márdila (Dalal Achcar), Humberto Carrão (Félix), Carla Ribas (Martha), Daniel Dantas (Raul Ryff), Caio Horowicz (Ricardo Gomes, o Pimpão), Maitê Padilha (Cristina), Thelmo Fernandes (Lino Machado), Helena Albergaria (Beatriz Ryff), Luana Nastas (Helena Gasparian), Isadora Ruppert (Laura Gasparian), Pri Helena (Maria José, a Zezé), Felipe Barreto (Reinaldo) e Lourinelson Vladimir (Interrogador)
Música: Warren Ellis
Cinematografia: Adrian Teijido
Direção de Arte: Carlos Conti
Efeitos especiais: Sérgio Farjalla Jr.
Figurino: Cláudia Kopke
Edição: Affonso Gonçalves
Companhia(s) produtora(s): RT Features, VideoFilmes e Mact Productions
Distribuição: Sony Pictures Releasing
Lançamento:
1 de setembro de 2024 (Veneza)
7 de novembro de 2024 (Brasil)
15 de janeiro de 2025 (França)
16 de janeiro de 2025 (Portugal)
17 de janeiro de 2025 (Estados Unidos)
Idioma: Português
Orçamento: R$ 8.000.000,00
Sinopse:
Rio de Janeiro, início dos anos 1970. O país enfrenta o endurecimento da ditadura militar. Os Paiva — Rubens, Eunice e seus cinco filhos — vivem na frente da praia, numa casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens é levado por militares à paisana e desaparece. Eunice, cuja busca pela verdade sobre o destino de seu marido se estenderia por décadas, é obrigada a se reinventar e traçar um novo futuro para si e seus filhos. Baseado no livro biográfico de Marcelo Rubens Paiva.
⚖️Créditos Da Sinopse: Cinesystem
Inomináveis Saudações a todas e todos vós, Seres Do Mundo.
Eu assisti a Ainda Estou Aqui aos 09 de fevereiro de 2025 no Cinesystem Botafogo, localizado no Município do Rio de Janeiro, aproveitando o grande desconto nos ingressos dado pela Semana do Cinema. A experiência me impactou tão profundamente, como algo que pela primeira vez eu vivenciei no cinema, que precisei de alguns dias para assimilar muito bem as sensações do filme e as minhas próprias sensações. Em um comentário no Instagram que li agora há pouco neste domingo, 16 de fevereiro, em que eu escrevo esta Resenha, uma usuária da Plataforma observa que o filme inteiro é sobre sensações. As sensações de uma família que tranquilamente vivia nos Anos 70 como todas as famílias ricas e pobres do Brasil, no meio de uma Ditadura que para muitas nem era algo da qual tinham consciência. As sensações de uma vida tranquila em família, com amigos e demais familiares, enquanto tanques e soldados lotavam as ruas. As sensações de uma rotina quase paradisíaca, apesar do Brasil estar longe de ser um paraíso se considerarmos toda sua História, da convivência diária de uma família no meio de uma época de brutalidade, sangue, torturas e mortes que 99% da população brasileira ignorava. Este último fator aqui precisa de um apontamento pessoal meu porque sempre em minhas Resenhas nunca abro mão de deslizar nas palavras as sensações que todas as obras que chegam até mim fazem eclodir.
Minha saudosa mãe sempre me dizia que nada sabia do que ocorria na época retratada no filme sempre que eu lhe perguntava sobre a Ditadura. Muitas outras mães, pais e famílias inteiras que passaram incólumes por todo o período existencial ditatorial também sequer sabiam dos horrores e terrores que ocorreram no mesmo. O comentário mais comum da minha mãe era sobre a Censura, algo que não a incomodava porque os Militares pareciam garantir para a população comum, em geral, que aquela visava à defesa dos bons valores familiares contra tudo que era por eles considerado “subversivo” e “imoral”. Minha mãe era Auxiliar de Enfermagem e trabalhou durante anos no Hospital Getúlio Vargas, localizado no bairro da Penha, Município do Rio de Janeiro; como outras mulheres e homens da Enfermagem, como as pessoas de outras Profissões, longe da Militância da Esquerda e da mira do interesse militar sobre suas vidas, ela nada soube do que ocorria de verdade no país. Uma Ditadura sempre encontra meios de ocultar, camuflar e fazer desaparecer evidências de seus crimes durante o curso de sua vigência. Eficientes foram os Militares pondo-se no papel de ocultadores do que faziam, sempre obrigando os Veículos da Imprensa a noticiar que os opositores ao Regime eram “Terroristas” e “Inimigos da Pátria”, impedindo que o senso crítico da população olhasse para o todo a fim de promover o entendimento claro da situação do que hoje denominamos como Anos de Chumbo. Ninguém fora do meio militante, acadêmico e artístico, ferozmente perseguidos, tinha noção das coisas que gritavam de dor, medo e ódio no contexto histórico em que este filme se enquadra.
Todas as pessoas, como a minha mãe, que nada sabiam do que acontecia em relação ao derramamento de sangue nos quartéis, delegacias e demais covis militares pelo país inteiro não podem ser atacadas e nem classificadas como alienadas, ignorantes e inconscientes do que foi a Sociedade Brasileira dominada pela Vontade Militar. Da época horrível na qual esta se manteve no topo da Governança Institucional, conheci apenas um sobrevivente, um Professor de História do Curso Pré-Vestibular GPI, no ano de 2001. Digo sobrevivente porque as marcas de sofrimento no rosto dele eram muito profundas e o mesmo mancava um pouco, o que me deu a impressão (o que pode ter sido apenas isto, uma impressão) de que ele havia sido preso e torturado pelos agentes da Repressão. Me lembro até hoje da aula que ele deu falando da Ditadura e de um relato que fez acerca de uma prisão, uma narração de abusos sexuais tenebrosos. A gravidade da situação passada de 1964 a 1985 foi, então, pela primeira vez, a mim revelada de modo chocante e impiedoso em uma aula que foi a mais sombria que já tive. Eu soube na aula que algumas mulheres, as maiores vítimas dos torturadores, preferidas por estes para serem humilhadas e tratadas piores do que lixo, tiveram as vaginas costuradas com ratos e baratas dentro das mesmas. O relato mais aterrorizante foi, no entanto, a de um casal de namorados que foram terrivelmente tão brutalizados que acabaram por perder a sanidade. Um prisioneiro que esteve com eles na mesma carceragem relatou que um dia, o casal foi posto junto em uma sala e fizeram sexo enquanto os torturadores se masturbavam vendo a cena. 2001 foi o mesmo ano do Onze de Setembro, o qual causou em mim um impacto estrondoso e iniciou verdadeiramente este atual Século 21. Porém, aquela aula está acima desse acontecimento histórico dentro de mim porque abriu os meus olhos para a Verdadeira História do Brasil, uma que não está nos livros escolares do Primeiro e do Segundo Graus até hoje. Se estivesse, muitos adolescentes e adultos que nasceram nos Anos 80 não estariam tão chocados com tudo que Ainda Estou Aqui retira dos porões da Memória Nacional sacudindo a poeira histórica que muita gente por aí gostaria que não fosse retirada de cima de tais acontecimentos.
Eu nasci aos 03 de agosto de 1976. Neste ano, aos 17 de janeiro o corpo do metalúrgico Manuel Fiel Filho foi encontrado nas dependências do DOI-Codi de São Paulo; aos 1º de julho, o Presidente Ernesto Geisel sanciona a Lei Falcão, reduzindo ao mínimo a Propaganda Eleitoral no Rádio e na Televisão; aos 23 de agosto, em um acidente de carro na Rodovia Presidente Dutra, próximo a Resende, Cidade do Estado do Rio de Janeiro, morre o ex-Presidente da República Juscelino Kubitschek; e aos 16 de dezembro, em uma emboscada no bairro da Lapa, no Município de São Paulo, três Dirigentes do Partido Comunista do Brasil são mortos (Ângelo Arroio, Pedro Pomar e João Batista Drummond; o evento passou a ser denominado como a Chacina da Lapa, considerado o último pior dos crimes da Ditadura; além das vítimas fatais, no mesmo dia, Aldo Arantes, Elza Monnerat, Haroldo Lima, Joaquim Celso de Lima, Maria Trindade e Wladimir Pomar, membros importantes do mesmo Partido, foram presos e torturados). Eu tinha de oito para nove anos de idade no ano de 1985, quando a transição do Regime Militar para o Regime Civil se completou; pouco lembro de figuras militares porque era muito pequeno, mas a figura seca e dura do último Presidente Militar, João Batista Figueiredo, ficou comigo porque era um homem que me causava medo. Citei acima acerca de livros escolares e no meu Primeiro e Segundo Graus nada do que eu ouvi naquela aula em 2001 se encontrava, apenas o período era chamado neles de “Governo Militar”. Saltando para o ano de 2024, em meu Primeiro Período no Curso de Biblioteconomia da UNIRIO, na Disciplina de História do Brasil III, a maravilhosa didática da Professora Brenda Coelho Fonseca (a melhor Professora deste meu reinício na Vida Acadêmica) me fez compreender que a Ditadura foi a culminância de todo um processo histórico que teve as suas origens no final do Período Imperial. Voltando para o dia 09 de fevereiro de 2025, as informações que carrego em mim voltaram à tona enquanto eu assistia ao filme, um processo assustador durante a minha imersão nele. Eu prestei atenção a cada detalhe, a cada diálogo, a cada passagem da obra… Ao mesmo tempo, parte da minha mente pulsou fortemente em direção ao conteúdo que adquiri relacionado às verdades históricas que, enfim, passaram a moldar o meu interesse em saber como realmente ocorreram os fatos de toda a História do nosso país.
Observei no início deste texto que geralmente não me desvencilho das obras que chego até mim, este é o meu modo de interpretá-las, bem pessoal, emotiva, às vezes racional e outras vezes instintiva, intuitiva e especulativa. Especulação, no entanto, não cabe no exame da relevância e da importância históricas de Ainda Estou Aqui, tudo ocorreu exatamente dentro do olhar de Marcelo Rubens Paiva no livro que Walter Salles moveu para as telas de cinema sem inventar ou romantizar qualquer fato. Todos já conheciam a história de Rubens Paiva, mas o ineditismo da mesma sendo contada em tela grande com tanta força resultou em uma obra-prima que toca em todo mundo de diversas maneiras. A mim, o filme tocou de tal modo que me levou a ficar durante uma semana meditando acerca do modo como eu escreveria uma Resenha que não fosse igual a tantas outras, tão técnicas e esvaziadas de emoção, que os Críticos Profissionais publicaram, estão publicando e publicarão pela Internet em diversos idiomas. Quase ninguém conhecia a história de Eunice Paiva, inclusive eu mesmo aqui elaborando estas linhas como um relato do quanto este filme penetrou, penetra e penetrará em mim. Fernanda Torres encarna uma mulher que não sucumbiu ao obscuro de uma época de exceção que mutilava, massacrava, violentava e assassinava tanto mulheres quanto homens. Ponto de ligação entre as duas atmosferas do filme (a fase leve antes da chegada de Schneider, encarnado com sinistra envergadura por Luiz Bertazzo; e o peso angustiante e depressivo que tomou conta do filme após o desaparecimento de Rubens Paiva, vivido com sobriedade e dignidade por Selton Mello), Eunice, uma mulher comum que se viu obrigada a se fortalecer e guiar os filhos quando viu que seu esposo não mais retornaria, transforma-se em um símbolo de resistência contra aquelas e aqueles que querem apagar a Memória. Os fatos que detalhei no parágrafo acima não podem ser apagados, tanto quanto o que ocorreu com a Família Paiva e tantas outras famílias brasileiras. Os fatos que muitos livros hoje em dia detalham, sem medo de represálias e concretizações de ameaças, porque eles e elas ainda estão aqui, não podem ser apagados. Os fatos que ainda serão revelados, posto que a Comissão da Verdade que a Presidenta Dilma Rousseff estabeleceu não revelou nem 1% do que ocorreu nos anos mais macabros da nossa História, apesar deles e delas que ainda estão aqui, igualmente não serão apagados. Eles e elas, que ainda estão aqui: os amantes de um Sistema Ditatorial que almejam fazer retornar ao Brasil de qualquer modo, sendo os participantes ainda vivos das consequências do Golpe Militar de 1964 quanto aquelas e aqueles nascidos posteriormente que hoje compõem os quadros da Extrema-Direita Brasileira.
Eles e elas ainda estão aqui. Este filme que abre muitos olhos, mentes e corações para os terrores e horrores do Regime Militar Brasileiro, é um alerta para todos que na nossa Sociedade lutam a favor da Democracia. Talvez, até um ou vários dos torturadores que vitimaram de diversos modos os que se rebelaram contra a opressão militar tenham ido assistir ao filme. Talvez, até quem era da Elite na época daquele e o apoiava também tenha ido. Talvez, andando ao nosso lado nas ruas, nos shoppings, nas universidades, nas praias, nas igrejas e em qualquer outro lugar, eles e elas que ainda estão aqui possam ter estado. Talvez, algum ou alguns dos nossos vizinhos mais antigos tenham sido torturadores ou apoiadores de uma tirania cujos ecos serão sentidos pelo país por muitos séculos ainda. Mas, sem aqui descambar para a Futurologia, fincando os pés na História do Tempo Presente (a Especialidade da Professora Brenda acima citada), temos brasileiros que não nasceram naqueles obscuros anos nos quais esta obra se refere e que, autoritariamente, clamam pelo retorno do Domínio Militar pleno institucionalmente. São os Extremistas defensores de um certo ex-Pseudopresidente da República, Jair Messias Bolsonaro, que, mesmo tendo elogiado um monstro como Carlos Alberto Brilhante Ustra na votação do Impeachment da Presidente Dilma, não foi socialmente execrado e foi eleito Governante Nacional por metade da população brasileira. O mesmo Bolsonaro que disse à Deputada Maria do Rosário que “não te estupro porque você não merece”; voltem parágrafos acima e leiam novamente o que eu escrevi sobre uma das formas como as mulheres eram tratadas pelos repressores no interior dos centros de tortura, raciocinando sobre o quanto de significado há naquela frase criminosa de um viúvo saudoso da Ditadura. É possível, leitora e leitor, dizer, então, que tudo evocado por Ainda Estou Aqui esteja afastado desta nossa época na qual, recentemente, foi descoberto um plano, que contou com o apoio total do próprio Bolsonaro, para assassinar os atuais Presidente e Vice-Presidente da República? É possível dizer, como algumas pessoas de má índole no meio acadêmico e no meio jornalístico dizem, que tudo em Ainda Estou Aqui faz parte de um passado remoto? É possível mesmo dizer que todos os fatos que levaram ao Golpe de 1964 não possam se repetir, mesmo que de outros modos (até mais violentos do que os historicamente conhecidos), daqui a um, dois, cinco, dez ou vinte anos? Olhem em seu redor, para o momento atual, o Tempo Presente, o contexto histórico de um país que a esta hora apresenta o crescimento diário de atos e pensamentos extremistas dentro e fora da Internet. É possível dizer que a sua família sairia incólume se a qualquer hora algo como tudo que levou à última Ditadura do Brasil, que durou vinte e um anos, promovesse uma nova abolição de toda e qualquer instituição e valores democráticos?
É muito promissor para a Indústria Cinematográfica Brasileira que Ainda Estou Aqui esteja ganhando Prêmios pelo mundo e, provavelmente, será agraciado com um ou os três Oscars para os quais foi nomeado. A exaltação da atuação da Fernanda Montenegro está alcançando grandes proporções pelo mundo também, o que é merecido demais. No entanto, sem que eu queira impor uma regra ou cagar qualquer uma aqui neste texto, nós não devemos esquecer qual é a mensagem mais poderosa do filme, que está além e acima de Prêmios. Parte de citada mensagem está no que escrevi acima desde o primeiro parágrafo deste texto, algo ligado à Memória como ato de resistência contra o retorno de todas as atrocidades da Ditadura caso o Extremismo vença. Estamos hoje no meio de um recrudescimento tanto do Extremismo Político quanto do Religioso, dois escopos de fundamentalismos carregando tudo que traz pensamentos retrógrados, autoritários e nocivos para um povo que há quase quarenta anos atrás se livrou de uma Ditadura. Mesmo que eu não queira inserir aqui regras, leitora e leitor, o importante é apaziguar e diminuir um pouco a euforia para que as sombras reveladas pelo filme dialoguem com tudo que está dentro da nossa época. Não quero trazer misticismo para uma Resenha Cinematográfica, mas não é uma coincidência que, logo após um retrocesso em quatro anos (2019-2022) que se fez acompanhar por uma quase tentativa de Golpe, Ainda Estou Aqui tenha surgido fazendo com que cada um de nós seja atingido por tudo que ele carrega. Gente como Schneider, o Interrogador de Eunice Paiva e os Soldados da Repressão vistos no filme existem nos dias atuais, o final de 2022 comprovou isto e muitas opiniões de Militares da atualidade comprovam o mesmo. Estando ainda aqui entre nós, os adeptos da barbárie no lugar da Democracia, tanto os que viveram dentro do Golpe quanto os que nasceram após este e o fim do mesmo, representam um perigo vivo, próximo e sufocante. Não estou exagerando, olhem muito bem como está polarizada a nossa sociedade neste hoje que o diálogo extremista (ou a falta dele) sufoca o discurso de uma Direita que não compactua com ele e uma Esquerda que não está sabendo muito bem confrontar o mesmo. O ódio dos Extremistas contra um filme como este, uma obra política que retrata a história de uma família vítima de um Estado Ditatorial, tem o seu lugar no palco das discussões evocadas pela obra porque esta denuncia a presença deles e delas entre nós. A coexistência bélica com esse tipo de defensor e defensora de uma brutalidade militarizada, mesmo que para muitos seja motivo de deboche nas Redes Sociais, não pode ser vista apenas como algo folclórico. O Ódio faz parte da nossa Cultura de hoje, o que muita gente nega dizendo que somos uma “nação pacífica”, o que a nossa História comprova que nunca fomos.
A nossa República nasceu através de um Golpe sem derramamento de sangue e tivemos duas Ditaduras sanguinárias dentro dela nascidas de Golpes. A história da Família Paiva, um microcosmo dentro de um macrocosmo histórico que não foi ainda totalmente compreendido pelo nosso povo, se encarrega de escancarar uma realidade que muita gente ainda teima em desconhecer. Não estamos mais dentro de uma Ditadura, as informações abertas estão espalhadas pela Internet sem que órgãos governamentais repressivos censurem Matérias, Artigos e Ensaios sobre os anos ditatoriais evocados e invocados por Ainda Estou Aqui. Nada hoje é como nos Anos 60, 70 e início dos 80, nos quais, como eu escrevi acima, uma opressão antidemocrática ocultava narrações de fatos como eles realmente ocorriam. Não dá para ser inocente ou dizer que “estamos livres de vivermos mais uma Ditadura” porque a conjuntura social atual nos pega pela goela e diz exatamente o contrário. Lembrando que eles e elas ainda estão aqui, resta não fecharmos os nossos olhos para as garras e os pensamentos que tentam a todo custo engolfar o Brasil novamente em macabros anos de proibições, perseguições, controle e tribunais de exceção. Sentir a proximidade deles e delas, exaltando um passado ditatorial tanto quanto diversas figuras que pertenceram ao mesmo, está a todo momento nos dizendo que devemos ter muito cuidado. Não apenas nós que não somos Autoridades, mas também estas, indo do Gabinete Presidencial ao Supremo Tribunal Federal, passando pelo Senado Federal e Câmara Dos Deputados. Ainda Estou Aqui também é uma mensagem para os que possuem Cargos importantes, os quais também, em alguns casos, estão ocupados por viúvos e viúvas da Ditadura. Há mensagens também para os membros a favor da Democracia dentro das Forças Armadas, os quais fica difícil dizer se são a maioria ou uma minoria pertencentes aos quadros atuais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Ninguém escapa de ser atingido de alguma maneira por este filme, odiando-o ou amando-o, desprezando-o ou exaltando-o, elevando-o a altos horizontes ou desejando lançar cada cópia em uma fogueira tal qual fizeram com os “livros proibidos” nos séculos em que perdurou a Santa Inquisição da Igreja Católica Apostólica Romana. Se pudessem, os que odeiam Ainda Estou Aqui até lançariam em fogueiras o Walter Salles, a Fernanda Torres, a Fernanda Montenegro, todo o Elenco do filme e toda a Equipe envolvida na Produção e Divulgação do filme. É esta a realidade que eu vejo e interpreto baseado no que estamos vivendo socialmente agora no Brasil.
Não há uma violência explícita no filme, o que torna tudo nele mais sombrio e melancólico ainda. A violência implícita degola, apunhala, estrangula, violenta, esquarteja, decapita e tortura por qualquer ângulo que se interpreta o peso que o filme carrega após a saída de Rubens Paiva dele. Eunice Paiva nunca revelou se foi ou não torturada quando esteve presa e o filme nos poupa de, em respeito à memória dela, mostrar torturas a ela infligidas visto que a mesma sempre se manteve calada quanto a isto. Já Eliana Paiva, muito bem vivida por Luiza Kosovski aos quinze anos de idade, relatou recentemente o que sofreu durante as vinte e quatro horas em que esteve presa no mesmo quartel onde a mãe permaneceu por doze dias. Em uma passagem que apresenta Eunice presa, há uma cena que, por si mesma, diz tudo sobre o que ocorria nos subterrâneos daqueles cinzentos anos: em sua cela, à noite, ela ouve os gritos de homens e mulheres torturados. Tenso, oprimido e com um nó na garganta, dentro do silêncio de uma sala de cinema que não estava lotada, fui seguindo até o final do filme. Como dito acima, segui tendo lembranças de tudo que até hoje eu sei da Ditadura e imerso na história, sem desviar os meus olhos, sem me retirar do foco centralizador da minha atenção para com as mensagens presentes em cada cena. Quando acabou o filme e os Créditos Finais começaram a surgir, ao som de “É preciso dar um jeito, meu amigo”, uma canção escrita por Erasmo e Roberto Carlos, cantada pelo primeiro, deixei lágrimas escorrerem pelo meu rosto. Ao som da música, imagens da casa onde a Família Paiva viveu os seus dias mais felizes. Uma casa que foi testemunha do amor entre Rubens e Eunice. Uma casa que foi testemunha do amor de ambos pelos filhos. Uma casa que foi testemunha do amor destes pelos pais. Uma casa que foi testemunha da abrupta e estúpida retirada de Rubens Paiva do seio de sua família. A casa, um dos Personagens Principais, uma arquitetura que ficou impressa com os sentimentos alegres e tristes de momentos antes e após a desgraça que caiu sobre a Família. Abandonando a casa e o Rio de Janeiro com os filhos, Eunice construiu em São Paulo uma nova história que todos nós já podemos conhecer, pois, creio eu, vocês devem ter pesquisado sobre ela após o assassinato do esposo pela Ditadura. A casa, no entanto, surgindo junto ao início dos Créditos Finais, simbolicamente pode representar todas as casas de todas as famílias que foram afetadas por anos cruéis regidos por um Militarismo que com mãos titânicas desgraçou muitas outras famílias. Aquela casa poderia ter sido a casa da minha família. Aquela casa poderia ter sido a casa da sua família.
Alguns acusam o filme de não ser inclusivo, mas o mesmo não é uma Tese de Mestrado ou Doutorado ou Pós-Doutorado acerca de toda a História da Ditadura Militar. É apenas um filme que conta a história de uma família carregado de um forte tom político porque tudo é Política. Não sendo morno e muito menos frio, Ainda Estou Aqui tem um coeso e consistente posicionamento político que esta minha Resenha interpretou conforme as mensagens que dele recebi. Após assistir ao filme, saí abalado da sala de cinema e até tentei assistir a outro filme, qualquer outro filme, o que não consegui, indo até outro cinema próximo ao Cinesystem. Resolvi, então, como era fim de tarde, ir para a Praia de Botafogo, que estava vazia (para minha surpresa) e me sentei em uma pedreira de frente para o mar. Olhando para este e para o Pão de Açúcar, fiquei a pensar na Família Paiva, se esta esteve naquela praia um dia e se o Rubens Paiva havia se sentado com a esposa e os filhos no mesmo lugar onde eu me sentara, olhando para os mesmos pontos no horizonte à minha frente que eu olhava. Havia na praia pessoas de um terreiro de Umbanda, uma Religião hoje tão vitimada pelo Extremismo Religioso, se preparando para uma Sessão, a qual assisti das 18:00 h às 21:00 h. Antes disto, fiquei sentado pensando no filme, pensando na minha vida, tirando fotos e me permitindo um momento diante de uma paisagem bonita enquanto anoitecia. Em determinado momento, pensei em outras famílias arrasadas pela Ditadura e no quanto o Ser Humano pode ser cruel, brutal e perverso, levando meus pensamentos em direção aos torturadores e assassinos do Regime. Anoiteceu, assisti à Sessão, fui embora para casa e os pensamentos no filme continuaram crescendo em mim. E continuarão crescendo porque eu ainda estou aqui, assim como você, convivendo no mesmo país com eles e com elas, os saudosos dos anos ditatoriais, que ainda estão aqui.
Encerro esta Resenha agora, às 16:47 h de um domingo, 16 de fevereiro de 2025. No ar aqui no Substack este texto estará a partir das 18:00 h do dia 19 de fevereiro. Eu estarei aqui. Você estará aqui. Eles e elas estarão aqui.
Aqui em um país cujo em uma pequena e dolorosa parte Ainda Estou Aqui nos seduz, aterroriza e devora.
Saudações Inomináveis a todas e todos vós, Seres Do Mundo.
Erasmo Carlos - É preciso dar um jeito meu amigo
Gostei muito do seu texto. Minha família escapou por pouco do que viveram os Paiva. Um dia conto ❤️